15/11/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «A realidade é muito abusadora»

« (...) Sem querer retirar gravidade ao momento que vivemos – falo, claro, abstractamente, já que por aqui o tema da eleição de Trump não terá tirado o sono a ninguém –, não pude deixar de me lembrar das palavras do poeta egípcio Salah Jahine (1930-1986) incluídas no livro de memórias do marroquino Mohamed Berrada, "Como um Verão que não Voltará: o Cairo, 1955-1996" (Quetzal, 2010):

"Hammad não esquecerá o seu encontro com o poeta Salah Jahine no início dos anos setenta. Tendo vindo ao Cairo procurar elementos para a sua tese, instalara-se numa pensão perto da avenida Kasr al-Nil. Uma noite, quando estava estendido na cama, foi iluminado pelo som de um alaúde acompanhado de uma voz doce e, de tempos a tempos, por comentários e risos; os ocupantes do quarto ao lado haviam organizado uma pequena festa entre amigos. No dia seguinte de manhã, perguntou ao proprietário da pensão quem ocupava o quarto: era o compositor Sayyed Mekkaoui. À tarde, ao sair, cruzou-se com Salah Jahine, cujo rosto lhe era familiar. Cumprimentou-o e apresentou-se; começaram a conversar e, quando Hammad lhe disse que gostaria de o rever com mais tempo, o poeta concordou de boa vontade e combinaram jantar juntos. Hammad, ainda cheio de entusiasmo apesar das decepções, inclinava-se para a revisão radical da experiência da esquerda. Nasser estava morto e tinha deixado um vazio que ninguém sabia como preencher. Hammad, ao abrigo da sua juventude e inexperiência, elaborava críticas e indicava o caminho da esperança; Salah Jahine deixava-o falar, contentando-se em intervir de tempos a tempos para lembrar a sucessão de desmoronamentos e recuos que assinalava a morte do grande sonho. Havia na voz dele uma melancolia indescritível; mesmo quando gracejava, o seu riso breve não conseguia vencer o muro de tristeza que o habitava por inteiro. Depois do jantar, Salah ofereceu-se para acompanhá-lo; a conversa continuou. Hammad falava e Salah escutava pacientemente. Chegados à porta da pensão, este disse-lhe: — Ouça, ostaz Hammad, tudo o que diz é muito bonito, mas, infelizmente, não serve para nada. — E porquê, ostaz Salah? — Porque o povo sempre foi de direita! Hammad lançou um olhar surpreendido ao seu interlocutor; continuava embrulhado na sua tristeza, mas, de repente, desatou a rir. Riu-se com ele e depois separaram-se com um aperto de mão. Foi o seu primeiro e último encontro com Salah Jahine."

01/11/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia»

«(...) com quem trocar dois dedos de conversa sobre o pus dos livros quando já se foram Jorge Fallorca (“Decorrido meio século de existência, li e escrevi o suficiente para considerar a escrita – como qualquer outro acto criador – antropófaga até à vileza”, in Longe do Mundo, 2004), Juvenal Garcês (e os nossos diálogos que tanto versavam a genialidade de Ibsen como a mediocridade dos caciques culturais, sem esquecer a superioridade inquestionável das bananas da Madeira), Rui Martiniano, que conheci como Rui “Bancário” para reencontrá-lo no acaso das ruas de Lisboa, tantos anos passados e era ontem, editor da Hiena e tão minoritário como sempre fora, Francisco Brás, o meu vizinho actor motorizado, admirador incondicional de Mário Viegas com quem trabalhou e antagonista encartado do pedantismo, ou toda a outra gente morta ou em silêncio, aqui ou nas cidades, as trincheiras a abarrotar de equívocos e vaidades?

25/10/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Sigamos o cherne!»

«Ai que prazer não cumprir um dever, ter uma crónica para escrever e não o fazer! (E com esta já vou na terceira ou quarta frase de abertura…)

11/10/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer»

«Se recordarmos a Guerra dos Cem Anos que assolou a Europa durante a Idade Média, concluímos, sem que isso nos sirva de especial consolo, que há guerras que vieram para durar.

04/10/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Desafinação outonal»

« (...) Integrado nas comemorações deste ano dedicadas ao nascimento do poeta – dizem que passaram cinco séculos e, pelos festejos, o que seria se não tivessem passado…! –, tal lançamento veio colmatar uma falha de peso. Pois se estávamos até agora impedidos de apreciar o imaginário pictórico que a epopeia camoniana despertara em Valter Hugo Mãe, o que por si só seria de lamentar, muito mais pobres ficaríamos sem a leitura do prefácio assinado pelo prolixo vate (referimo-nos, claro, ao desenhista e não a Luís de Camões, que se limitou quase só a fazer versos).

28/09/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Dos frigoríficos às bombas»

«Sonhei que tinha tido início a III Guerra Mundial. Felizmente, ao acordar, nenhum cheiro a napalm o confirmava.

20/09/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Volta, Peter Sellers!»

«Como antigamente se dizia: mudámos de paradigma. Para trás, os tempos em que os comunistas comiam criancinhas ao pequeno-almoço e eutanasiavam os velhos com uma injecção atrás da orelha. Chegados os bárbaros que nunca mais chegavam do poema de Kaváfis, temos agora imigrantes de proveniências exóticas que raptam e comem animais de estimação, incluindo cães, gatos e gansos.

(...)

Não se pense, porém, que a regressão se dá só nas fileiras trumpistas. Em hordas mais civilizadas e culturalmente tidas por informadas, o retorno ao passado também está aí, à vista de quem o quiser ver.

06/09/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Cronicando»

«(...) Voltando à mexida no gerúndio. Problema menor, se não mesmo inexistente (como reconhece, aliás, o jornalista e escritor brasileiro Sérgio Rodrigues na sua entrevista ao Expresso de 24 de Agosto), inexistente e insuficiente para encobrir a carrada de problemas reais que enfrenta a língua em Portugal.

30/08/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Riso Amarelo»

«(...) não se espere da minha parte qualquer contribuição relevante para o debate actual em torno do idadismo – a nova palavra da moda que, aposto, irá ultrapassar um dia a praga do populismo.

23/08/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Incertezas de Agosto»

«(...) onde pára o jornalismo?

16/08/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Os livros são para se comer»

«(...) A mulher que nunca largará a cor do luto viajou menos do que a mulher de olhos muito azuis. Na realidade, nunca viajou. Com uma história igualmente, se não mesmo mais difícil – mãe espanhola que cruzou o rio em fuga da Guerra Civil e marido contrabandista que cruzaria o rio em sentido contrário enfrentando tanto a Guarda Fiscal como a Guardia Civil – é a prova de que a causalidade é conceito demasiado infecundo, sobretudo quando aplicado ao comportamento humano. Sempre positiva, apesar da vida de trabalho e pobreza, sempre gentil, apesar da dureza que lhe calhou em sorte, contrasta com familiar de sangue e destino comum a quem um simples “Bom dia!” poderá acarretar como resposta: “Bom dia só se for para si!”

09/08/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Então e os Bárbaros: Chegam ou não Chegam?»

«(...) A extrema-direita e as redes sociais têm servido de explicação [para a situação no Reino Unido]. Mas eu que sou do tempo dos aplausos e vivas às redes sociais aquando da chamada Primavera Árabe de 2011, pergunto-me que diferenças substanciais no seu uso se deram de ontem para hoje?

05/07/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Semana Negra»

« (...) Havia um bar no rés-do-chão do prédio e entre mim e o bar sobrava um piso de escritórios. Durante algum tempo dirigido por um madrileno, tornara-se local de agradável convívio, os bancos altos do balcão a comporem aquele cenário acolhedor dos filmes onde pontifica um barman camarada, confessor de histórias a quem nunca falta paciência. Tudo mudou quando o madrileno se foi embora e deu lugar a locatários portugueses que se tomavam por aficionados espanhóis da arte tauromáquica. Os agrobetos começavam então a ficar na moda. Eu era, portanto, mais nova.

28/06/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Altas Temperaturas»

«(...) Quando, no ano já distante de 2014, Matt Taylor, astrofísico britânico e um dos responsáveis pelo sucesso da missão Rosetta, apareceu em público a chorar – reagindo à enxurrada de críticas que milhares de mulheres terráqueas e ofendidas tinham feito chegar às redes sociais –, a pedir desculpa por ter ousado vestir uma camisa de manga curta com desenhos de pin-ups, houve quem se lembrasse imediatamente da Revolução Cultural Chinesa e dos seus métodos de flagelação e humilhação públicas.

14/06/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA «Os EMPATAS: Nos dias bons, aplaude-se a resistência ladina dos portugueses ao poder; nos dias maus, critica-se a falta de frontalidade dos mesmos.»

«(...) Considerando o avanço da extrema-direita na Europa – embora não falte quem, fazendo umas contas de merceeiro continue a achar, desentendendo a ironia do aforismo de Ennio Flaiano, companheiro de estrada e de argumentos de Fellini: “La situazione politica (…) è grave ma non è seria” – (veja-se o exemplo de Ursula von Der Leyen, gritando em êxtase sem desarrumar o cabelo: “Vencemos as eleições europeias!”), os resultados em Portugal só nos podem alegrar.

Em resumo: o voto de protesto no Chega, sendo grave, não foi sério. Os deuses nos ouçam!
«De resto, basicamente o costume. Os portugueses, mais uma vez comedidos, optaram pelo empate. A calcutaense Temido lá vai para a Europa, assim como o pernóstico Bugalho e mais uns quantos, um pacote onde se incluem betos e betinhos. Aproveitemos que daqui a nada metem-se as férias de Verão e muito pior estão os franceses.
«Ainda assim, impossível esquecer que os tambores da guerra continuam a rufar pela Europa. Mas como diz o mais macabro provérbio nacional: “enquanto o pau vai e vem folgam as costas!” E termino por aqui que não quero estragar um dia bom.»

24/05/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: "Silêncio que se vai cantar o fado!"

«(...) Como se sabe, a liberdade de expressão é terreno escorregadio onde nem tudo é a preto e branco.«(...) Como se sabe, a liberdade de expressão é terreno escorregadio onde nem tudo é a preto e branco.
Há uns dias saiu neste jornal um texto assinado por Ana Sá Lopes de título “Pode um deputado dizer que os judeus são uma etnia ‘mais burra’?”.
Segundo a autora seria pouco provável que, fosse esse o caso, o presidente da Assembleia da República se mostrasse tão permissivo à livre oratória: “É evidente que, se a etnia visada fossem os judeus, a reacção não seria essa. Não estou a ver José Pedro Aguiar-Branco a permitir na Assembleia insultos aos judeus (mas confesso que já estou por tudo). Sinceramente, acho que não o fará, porque carrega a culpa que todos nós, europeus, carregamos por termos permitido, no século XX, o Holocausto”.
Deixando, por ora, de lado a questão da “culpa abstracta”, passemos de imediato ao concreto.
Primeiro, preguiçoso (em rigor: “pouco trabalhador”) não tem o mesmo peso de “burro”. Segundo, entre negar o Holocausto enquanto facto histórico ou afirmar que os judeus foram bem mortos (discurso de ódio) e chamar burro a um povo continua a haver significativas diferenças. O mesmo se diga, por exemplo, de dizer “os imigrantes não querem trabalhar” ou “os imigrantes deviam afogar-se todos”.
Finalmente, e para entrar no problema abstracto da “culpa colectiva”, atendendo a que se trata da contestação a generalizações, faço notar que tão generalista é falar da culpa de “todos nós, europeus” como de “turcos” e do seu pouco amor ao trabalho.
Vivem-se tempos paradoxais. Enquanto uns clamam por discursos impolutos, os discursos brejeiros vão galgando terreno. Enquanto uns reagem ruidosamente denunciando qualquer expressão na qual vislumbrem o menor indício de “linguagem menos própria”, os falantes da chamada “linguagem menos própria” batem palmas, agradecem a deferência, a difusão, e engrossam o discurso, acabando também por engrossar, como previu Umberto Eco (no caso, referindo-se às redes sociais), a “legião de imbecis” que dantes se ficava pela taberna e que hoje chegou aos parlamentos.»

17/05/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Calma, é apenas um pouco tarde»

«(...) Enquanto o país discutia com um afervoramento que, por si só, teria sido capaz de derrotar os exércitos de Alexandre, o Grande, ora o caso do marchand preso no momento em que ia dar uma entrevista a Cristina Ferreira – e isso faz-se?, perguntaria Cristina Ferreira num tom mais estrídulo do que o habitual –, ora o caso do Festival da Eurovisão – certame desadormecido algures no tempo entre "A desfolhada" de Simone de Oliveira e o "Amar pelos dois" de Salvador Sobral e que se transformaria num espectáculo de orgulho queer este ano apimentado pela guerra entre Israel e o Hamas e a tolerância zero da organização não se sabe bem a quê –, por aqui as conversas versavam a mecânica dos tractores, o caso de um javali desembestado e as bebedeiras entre dois irmãos que, ainda não atingida a taxa de álcool no sangue de 0,5 g/l, acabam fatalmente em pancadaria.

10/05/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Longe do mundo*»

(...) Lembrei-me depois de Camilo Castelo Branco e da sua copiosa produção literária, que a vida custa a todos (ou, pelo menos, à maioria).

03/05/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Olhai as popoilas do campo»

«... Curioso como num mundo cada vez mais afastado da natureza – apesar da crise climática e das latas de tinta arremessadas contra tanta tela exposta em museus – se vai dando, em simultâneo, um empobrecimento da linguagem, não só do número das palavras em uso, mas também da diversidade dos seus sentidos que, no essencial, tendem a abandonar a sua panóplia multifacetada (à semelhança da pluralidade dos risos) para se verem entrincheirados entre as categorias do aceitável e do não aceitável.

22/03/24

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Galinhas, robots e tacos de basebol»

«Em 1995, Umberto Eco foi convidado a falar na Universidade de Columbia sobre os regimes fascistas que haviam dominado a Europa e conduzido à II Guerra Mundial. A palestra acabaria por acabar impressa sob o título de Ur-fascismo ou Fascismo eterno (in "Cinco Escritos Morais", trad. José Colaço Barreiros, Relógio D’Água, 2016).
Se nada é eterno (só a morte e os impostos, disse alguém cujo nome não me ocorre), as características listadas por Eco vêm de jure et de facto granjeando uma influência que, descontados os debates académicos – imagino os presos do Forte de Peniche a interrogarem-se melancolicamente deixando-se levar pela maresia das águas: “Será isto o fascismo ou apenas um regime um bocadinho autoritário?” –, é impossível negar terem galgado o ontem para se abaterem ruidosamente sobre o hoje.
No nosso caso, o ontem foi há 50 anos e a célebre pergunta de Baptista-Bastos: “Onde é que estava no 25 de Abril?” arrisca-se a ser brevemente trasladada da TV para os cemitérios, equiparando-se, mais e mais, à hipotética pergunta: “Onde é que estava no 5 de Outubro”. C’est la vie.
Entretanto, as coisas complicaram-se. Eternidades à parte (na lista de Eco falta essa grande novidade de, online, ser um afim de um robot a pedir aos humanos que provem que não são robots…), dizia ele com razão: “Seria tão confortável para nós se alguém assomasse à cena do mundo e dissesse: ‘Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas negras tornem a desfilar em parada pelas praças italianas!’ Mas, ai, a vida não é assim tão fácil. O Ur-fascismo ainda pode voltar sob as vestes mais inocentes”.»